terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Reflexão 7. JUDAIZANTES E HELENISTAS NA IGREJA HOJE


A Igreja de Jerusalém era inteiramente judaica na sua concepção inicial, mas dois grupos de judeus participavam da comunhão: os gregos ou helenistas, nascidos fora da Palestina, falavam grego e tinham atitudes e pensamentos mais helênicos do que hebraicos; os judaizantes, nascidos na Palestina, falavam aramaico e mantinham costumes e cultura hebraica. O episódio da instituição dos diáconos é um dos confrontos que a Bíblia apresenta entre tradição e convivência com o novo.

Tradição (do latim tradere = "entregar, passar adiante") é a continuidade ou permanência de uma doutrina, visão de mundo, costumes e valores de um grupo social ou escola de pensamento. Não há grande problema em se manter a tradição, atitude, aliás, incentivada por apóstolos e discípulos iniciais com relação às verdades do evangelho que haviam aprendido do próprio Senhor Jesus e que precisavam divulgar. No entanto, o grupo que aparece como “judaizantes” não estava tentando defender as verdades do evangelho, mas proteger um grupo especial de viúvas, que eram puramente do povo judeu nascido na Palestina. O mesmo grupo vai aparecer em outra circunstância em Atos 15: “Então, alguns que tinham descido da Judeia ensinavam assim os irmãos: Se vos não circuncidardes, conforme o uso de Moisés, não podeis salvar-vos.” O problema era atrelar o evangelho de Cristo do Novo Testamento ao judaísmo, religião dos judeus naqueles dias. Havia naquele grupo uma ideia da permanência da visão de mundo judaica sobre a cristã.

Visão de mundo, ou cosmovisão, é um conjunto de suposições e crenças que alguém usa para interpretar e formar opiniões acerca da sua humanidade, propósito de vida, deveres no mundo e questões sociais. Todo ser humano possui uma cosmovisão. Aquilo que cada pessoa é, o que defende, o que vive, é resultado da cosmovisão que dirige sua vida. Há uma grande variedade de cosmovisões ao longo da história e atualmente. Há ainda uma Cosmovisão Cristã, que influencia muito a maneira em que a pessoa vê a Deus. A cosmovisão teísta crê em um Deus infinito e pessoal, que existe além do universo, que criou todas as coisas e sustenta tudo de modo sobrenatural. A Modernidade criou a cosmovisão chamada deísta, visão naturalista que vê Deus além do universo, mas não nele, não interagindo sobrenaturalmente com aquilo que criou. O ateísmo afirma que não existe nenhum Deus além do universo físico, formado por matéria autossuficiente. O panteísmo defende que Deus é todo o universo, não havendo um criador distinto: criador e criação são a mesma realidade; universo, matéria, pessoas, tudo é Deus. O politeísmo crê que existem muitos deuses no mundo e além dele, influenciando a vida das pessoas.

O Cristianismo entrou inicialmente em contato com o politeísmo grego; é só lembrarmos Paulo no Areópago. Além da cosmovisão politeísta, havia a cosmovisão formada pela filosofia grega, elaborada a partir de cinco séculos antes da vinda de Cristo. No seu início, a Igreja Cristã, sem grandes estruturas de sustentação, entrou em confronto direto com essas visões, que defendiam pontos de vista conflitantes com o evangelho.

Ao longo da história, tradição e renovação tem-se digladiado, existindo ainda entre elas a heresia. Afinal de contas, o que é ser tradicional ou renovado como cristão hoje? O que seria “tradição” de acordo com a Bíblia? Existem tradições humanas e tradições divinas. As humanas não passam de usos, costumes e convenções sem nenhum apoio nas Escrituras. Hinário, instrumentos musicais nos cultos, roupas, comidas, jejum, modos de orar, mulher com ou sem véu ou cabelo comprido, homens e mulheres sentados juntos ou separados, uso da tecnologia na igreja são opções unicamente da tradição humana, ligadas aos “relativos do homem” e não aos “absolutos de Deus”. Jesus condenou as tradições religiosas humanas, especialmente quando elas invalidam ou contrariam aquilo que Deus ordenou, como o que disse e foi registrado por Marcos: “Porque, deixando o mandamento de Deus, retendes a tradição dos homens, como o lavar dos jarros e dos copos, e fazeis muitas outras coisas semelhantes a estas”.

Por outro lado, os adeptos da renovação acabam por vezes a tentar relativizar os “absolutos de Deus”, atitude, aliás, bem pós-moderna. Nem todas as igrejas ditas “renovadas” podem ser consideradas de fato “espiritualmente renovadas”. Na realidade, muitas passaram a adotar doutrinas estranhas ao Novo Testamento, como a Teologia da Prosperidade, o culto transformado em show, a unção do riso, a “queda no espírito”, o neojudaísmo, a autoajuda em lugar da Palavra de Deus, a confissão positiva, dentes de ouro, entrevistas com demônios, maldição hereditária, venda e veneração de objetos santos ou consagrados e outras inovações. Tais coisas não passam de outros evangelhos ou de falsas revelações, frutos da apostasia profetizada para os últimos tempos.

Existem, portanto, erros e acertos em ambas as partes, tanto no campo tradicional quanto no renovado. O pastor Luiz Sayão afirma: “Há grupos perdendo o equilíbrio teológico… no legalismo, no misticismo desenfreado ou no tradicionalismo irrefletido, entre outros problemas”. Biblicamente falando, boa parte da discussão sobre igreja tradicional ou renovada não tem sentido. Não é prudente nem correto polarizar a questão de forma radical. Regras estranhas por vezes tornam-se “padrão de espiritualidade”, como usar (ou não) paletó e gravata, bater ou não palmas, usar ou não barba, ouvir música mundana, usar roupas ou penteados específicos, limitar ou uso de instrumentos musicais nos cultos e muitas outras.

É preciso reconhecer que servimos a um Deus absoluto, com verdades imutáveis e inspirador de uma tradição apostólica que precisa ser mantida a todo custo. Como seres humanos, vivemos em um mundo mutável e a pregação e vivência do evangelho precisa ser relevante para o século no qual vivemos. Sejamos sal neste mundo apodrecido e luz para uma humanidade em trevas. Que a tradição e a renovação andem juntas para honra e glória do nosso Deus, respeitando sempre a sua vontade e a sua Palavra. 

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Reflexão 8: UNIDADE NA IGREJA HOJE

Pouco antes de tomar o caminho da cruz, a oração de Jesus ao Pai por seus discípulos presentes e futuros é tocante e significativa; “para que todos sejam um” foi sua grande ênfase, pois ele sabia que unidade seria uma das tarefas mais difíceis da Igreja. A Igreja Primitiva já não mantinha uma uniformidade inicial muito grande. Alister McGrath em “Heresia” afirma: “Embora seja correto falar do cristianismo primitivo como uma tradição única, talvez seja melhor pensar nele como uma rede complexa de grupos e indivíduos que existiam em diferentes contextos sociais, culturais e linguísticos. Esses grupos procuravam relacionar a sua fé a esses contextos e expressá-la em termos que fizessem sentido dentro daqueles contextos”. Essa “rede complexa de grupos e indivíduos” existente em “diferentes contextos sociais, culturais e linguísticos” diz respeito aos diferentes povos que compunham o Império Romano no primeiro século, cada um com suas características próprias e recebendo a mensagem do evangelho de judeus, habitantes da Província da Judeia, que também havia sido integrada ao Império e que também tinha seu contexto social, cultural e linguístico próprio.

Desde o ano 30 do primeiro século da Era Cristã, a Igreja de Cristo tem percorrido um longo caminho, cheio de conflitos, perseguições, confrontos, e isto tem deixado suas marcas. “O que faz de uma igreja uma igreja? O que é necessário para existir uma igreja? Pode um grupo que se diz cristão tornaram-se tão diferente do que deve ser uma igreja, que tal grupo não deva mais ser chamado igreja?” Estas são indagações de Wayne Gruden, em sua Teologia Sistemática, 500 anos após Lutero. Para Alister McGrath, seguindo o pensamento de Lutero e de Calvino, “há dois e apenas dois elementos essenciais numa igreja cristã: a pregação da palavra e a administração apropriada dos sacramentos”. Pensando nos propósitos e nos ministérios da igreja, Gruden entende que uma Igreja Cristã, com relação a Deus, deve adorar, com relação aos cristãos deve edificar e com relação ao mundo deve evangelizar e exercer misericórdia, mantendo esses propósitos em equilíbrio. O assunto é polêmico e não se resolve apenas com poucas citações. Além das congregações locais, chamadas por Earl Cairns de “organizações”, existe também o “Organismo”, a Igreja de todos os tempos a ser arrebatada na volta de Cristo. Alister McGrath afirma sobre o assunto: “Pode bem haver uma única Igreja Universal, à qual pertencem todos os cristãos, porém há inúmeras igrejas locais. Cada uma delas incorpora uma ideia distinta do que significa ser cristão, frequentemente adaptando-se às especificidades de uma situação cultural local ou tendo sido modelada por uma controvérsia cuja relevância teológica e poder emocional definham a cada ano que passa”. Especificidades de situações culturais locais e controvérsias teológicas e emocionais têm modelado a formação de inúmeras igrejas locais, muitas agrupadas em denominações, com diferentes declarações doutrinárias, como acontece com os batistas, por exemplo. 

Pode haver unidade na Igreja Cristã no século XXI? Conforme narra Lucas em Atos, perseverança na doutrina dos apóstolos, na comunhão, no partir do pão e nas orações; temor a Deus, levando-o a sério, com reverência, obediência e respeito: estas eram características da Igreja no seu início. Como resultado disso, havia prodígios e sinais e os irmãos faziam tudo com alegria, gratidão, conquistando a simpatia do povo. O tempo passou, a Antiguidade foi sucedida pela Idade Média, esta pela Modernidade e hoje vivemos uma fase posterior à Modernidade. Cada era na história traz mudanças e elas têm reflexo na vida da Igreja e de seus membros. Uma das mais difíceis missões deixadas por Cristo aos seus seguidores foi a de “estar no mundo” e “não ser do mundo”.   Eventos, circunstâncias, linhas filosóficas, mudanças de cosmovisão são fatores que reforçam o relativismo da vida humana, já que estamos diretamente relacionados ao “aqui e agora”. Desde o Antigo Testamento, Deus apresenta-se ao seu povo como “Eu sou”. O Novo Testamento afirma que Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e eternamente. Os alicerces sobre os quais Cristo edificou a sua Igreja são absolutos e imutáveis. A Pós-Modernidade vivida hoje diz não haver verdades absolutas, mas relativiza tudo o que existe. Como acomodar hoje os “absolutos de Deus” com os “relativos do homem” na ação de ser igreja? Os fundamentos do evangelho não podem ser mudados, pois foram colocados pelo próprio Deus na pessoa de seu filho Jesus Cristo. Ele é a Rocha, o alicerce da Igreja, que sustenta o seu crescimento e resistência diante de perseguições e conflitos. A Igreja é a Noiva de Cristo. A palavra “Igreja” (do grego “ekklesia”) significa “aqueles que foram chamados para fora do mundo”, apontando para um povo separado para os propósitos de Deus, que busca a santificação de vida. No Reino de Deus não há menor nem maior. A obra é de Deus, não nossa. Somos todos cooperadores de um único Deus que não faz acepção de pessoas. Somos cooperadores uns dos outros, não concorrentes. A obra de Deus não depende somente do que sou e tenho, depende essencialmente de Deus. Um semeia, outro colhe, mas a glória de tudo pertence a Deus.

A Reforma Protestante estabeleceu para o protestantismo o princípio do livre exame das Escrituras. Em questões secundárias, não houve uniformidade na interpretação de textos bíblicos. Lutero, Calvino e Wesley não concordaram sobre pontos de menor importância. No entanto, foi o luteranismo que fez a Alemanha culta e poderosa. Foi o calvinismo que deu uma coerente organização às igrejas reformadas, com base intelectual para a sua fé. Foi o wesleyanismo que acendeu o fogo espiritual do evangelismo na Inglaterra e salvou aquele país do ateísmo e da anarquia. A denominação batista muito concorreu para o estabelecimento dos princípios da liberdade religiosa e da fé pessoal em Jesus Cristo. Há denominações e grupos evangélicos que atraem mais os intelectuais, outras apelam mais para as emoções. Uns adotam um culto ritualista quem aprecia solenidade nos cultos; outros primam pela simplicidade no culto.

Como Igreja Cristã hoje, seja o nosso lema "unidade no essencial, liberdade no secundário, amor em tudo". É a unidade na diversidade: unidade no Espírito de Deus, mas diversidade em formas de ser igreja é parte do desafio enfrentado pela Igreja no século XXI.

 

ÍNDICE

Introdução 1.        O século apostólico 2.        Expansão, perseguição e defesa da fé 3.        Acusações e perseguição 4.        ...