terça-feira, 14 de julho de 2020

ÍNDICE

Introdução

1.       O século apostólico

2.       Expansão, perseguição e defesa da fé

3.       Acusações e perseguição

4.       Ortodoxia e Novo Testamento

5.       Patrística e bispado

6.       A cristianização do império

7.       Dogmas e concílios

8.       Monasticismo

9.       Agostinho de Hipona

10.   O papado

11.   Catolicismo Romano X Oriental

12.   Os bárbaros

13.   Sacro Império Romano-Germânico

14.   Ascensão e queda do Papado

15.   A cruz e o crescente

16.   Escolasticismo

17.   Catolicismo e feudalismo

18.   Ascensão, queda e reforma dos mosteiros

19.   A guerra santa

20.   Heterodoxias católicas

21.   A reforma se prenuncia

22.   O evento da Reforma

23.   Lutero e luteranismo

24.   Zuinglio e anabatismo

25.   Calvino e calvinismo

26.   Anglicanismo

27.   Trento e a reação católica

28.   Puritanismo

29.   Catolicismo na América

30.   Protestantismo na América

31.   Denominacionalismo

32.   Racionalismo

33.   Pietismo

34.   Wesley e metodismo

35.   Despertamentos

36.   Catolicismo reafirmado

37.   Evangelismo e sociedade

38.   Missões aos povos distantes

39.   Uma América cristã

40.   Liberalismo protestante

41.   Cristianismo e Socialismo

42.   De Wesley ao pentecostalismo

43.   Século das ideologias

44.   A expansão dos Estados Unidos

45.   A igreja e a expansão dos Estados Unidos

46.    Ecumenismo

47.   Vaticano II e “Aggiornamento”

48.   Cristianismo e Modernidade

49.   Cristianismo e a geração do “Eu”

50.   Cristianismo e globalização

Epílogo

INTERLÚDIO: O jornalismo e a história

·         Reflexão 1. Emergente: a Igreja da Pós-Modernidade

·         Reflexão 2. A Igreja e as diferentes eras históricas

·         Reflexão 3. Éden, deserto, cotidiano

·         Reflexão 4. Laodiceia e a igreja atual

·         Reflexão 5. O cristão: peregrino ou cidadão do mundo?

·         Reflexão 6. Pregando em Samaria no século XXI

·         Reflexão 7. Judaizantes e helenizantes na igreja de hoje

·         Reflexão 8. Unidade na Igreja hoje


segunda-feira, 13 de julho de 2020

INTRODUÇÃO

“História é a ciência que estuda eventos passados com referência a um povo, país, período ou indivíduo específico. É o conjunto de conhecimentos relativos ao passado da humanidade e sua evolução, segundo o lugar, a época e o ponto de vista escolhido.”

A História da Igreja se insere na ciência geral da história, dedicando-se ao estudo específico das diversas tendências eclesiásticas existentes no interior do Cristianismo, investigando a história das Igrejas Católica, Ortodoxa e Protestante, além de outros grupos cristãos. Para isso utiliza outras áreas de conhecimento humano, como a a geografia, a teologia e a filosofia, por exemplo.

 “O que limita a capacidade do historiador de escrever relatos objetivos não é apenas o incrível volume de acontecimentos, mas o fato de que muitos acontecimentos mais importantes jamais aparecem no jornais ou sequer na memória de alguém; para construir um argumento, o historiador precisa selecionar um minúsculo número de fatos a partir do número limitado dos que são conhecidos” (Allen e Abraham).

 Estamos iniciando uma releitura da História da Igreja ao longo de vinte séculos de existência. Pelas citações acima, verificamos que não é tarefa fácil. Para servir de base a esta pesquisa, usamos a História do Cristianismo ao Alcance de Todos, de Bruce L. Shelley, além de toda a pesquisa inicial por nós acumulada e organizada ao longo de doze anos. Nossa oração é que Deus nos ajude a criar textos que desafiem a sua Igreja a melhor conhecer e mais amar suas conquistas e reconquistas ao longo do tempo, para que este trabalho seja edificante e glorifique a Deus, que tem tudo sob seu controle, inclusive a própria história. 

1. SÉCULO APOSTÓLICO


As colinas da Galileia sempre abrigaram grupos guerrilheiros judaicos prontos para iniciarem uma revolta ou destruir um símbolo de autoridade romana na Palestina. Dividiam-se eles em facções: fariseus, saduceus, zelotes, essênios, cada qual com suas crenças e características. Precedido de João Batista, Jesus iniciou seu ministério na Galileia e pregou sua mensagem aos seus seguidores, anunciando a chegada do Reino de Deus e reunindo muitos discípulos pelos sinais que fazia.

Os judeus estavam presentes em grande número por todo Império Romano, chegando talvez a 7% da população total. Suas diferentes crenças religiosas provocavam tanto atração quanto repulsa para seus vizinhos: alguns gentios, gregos e romanos viam as doutrinas da sinagoga como sabedoria profunda; outros não tinham tanta certeza. A maioria desses gentios permaneceu na categoria de "tementes a Deus", interessados na fé judaica. Após o ano 70 depois de Cristo, o centro do movimento cristão se transferiu de Jerusalém para a Antioquia, na Síria, atingindo o evangelho a Bitínia, Roma, Lyon na França, chegando à Bretanha, Cartago e Alexandria no Egito, no norte da África. Por volta do final do século terceiro, todas as áreas do império tinham algum testemunho do evangelho, sendo as mais fortes a Síria, a Ásia Menor, o norte da África e cidades maiores, como Roma e Lyon. As pessoas das aldeias, na maior parte das regiões, permaneceram inalcançadas.

Começando pelo livro de Atos dos Apóstolos, provavelmente escrito por Lucas, a história da Igreja cristã tem sua origem no Dia de Pentecostes, em Jerusalém, quando o evangelho foi pregado a milhares de pessoas, que o entenderam em suas línguas de origem, embora nem todos morassem na Judeia, graças ao dom de línguas dado pelo Espírito Santo aos seguidores de Jesus. A Igreja começou com força, tendo naquele dia cerca de três mil pessoas se somado aos 120 iniciais, e viveu um período em Jerusalém de comunhão no partir do pão, nas orações e também nos bens pessoais, suprindo as necessidades de muitos seguidores. O primeiro mártir foi Estêvão, que morreu apedrejado pelos próprios judeus, fato que causou a primeira perseguição à Igreja e a fuga de parte dela para as regiões gentias. Isto fez com que o IDE de Cristo para a pregação do evangelho iniciasse sua caminhada geográfica, de Jerusalém à Judeia, Samaria, até os confins da terra. Pedro foi o líder inicial do rebanho em Jerusalém, tendo Paulo assumido a liderança do trabalho entre os gentios a partir de três viagens missionárias realizadas com base em Antioquia. O livro de Atos termina com Paulo na prisão em Roma.

Após o livro de Atos, a história registra como fatos marcantes no século o incêndio de Roma, a morte de Pedro e Paulo e a destruição de Jerusalém e do Templo no ano 70. A tradição afirma que o último apóstolo a morrer foi João, em Éfeso onde residia e terminou seu ministério, no ano 100, encerrando o Século Apostólico. Antes de sua morte, em exílio na ilha de Patmos, João teve a revelação sobre os últimos tempos relatada no Apocalipse, livro que encerra o Novo Testamento. Ao instituir a Ceia do Senhor, tomando o cálice, Jesus afirmou: “Este cálice é a nova aliança no meu sangue, derramado em favor de vocês”. A velha aliança havia sido estabelecida com Abraão, no Antigo Testamento, ao prometer Deus ao patriarca fazer dele pai de uma grande nação. A promessa se cumpriu, tendo surgido Israel como povo escolhido. A nova aliança (ou novo testamento) estava sendo estabelecido pelo Filho com a Igreja, os cidadãos do Reino de Deus, entre os quais nos incluímos.

Que o estudo da história desta Igreja seja edificante para todos os que dela tomarem conhecimento, para que, nos momentos de grandes vitórias ou mesmo naqueles de grandes dificuldades, possamos ver a mão de Deus orientando e transformando em bênçãos para seus filhos os eventos acontecidos em quase vinte séculos de existência do Corpo de Cristo sobre a terra. 

2. IDENTIDADE, EXPANSÃO E DEFESA DA FÉ


Quem eram os cristãos? Durante os três primeiros séculos, a maioria dos crentes cristãos era formada por pessoas simples e humildes, escravos, mulheres, comerciantes e soldados. Celsius, um dos críticos do Cristianismo, caracteriza os cristãos como "pessoas sem valor e desprezíveis, imbecis, escravos, mulheres pobres e crianças"; acrescenta ainda: "Essas são as únicas pessoas que eles conseguem transformar em crentes". Contra esses críticos, surgiram os apologistas, palavra grega que significa "defesa". Embora dirigidas inicialmente aos imperadores, as apologias eram destinadas também às pessoas cultas. Destacam-se aí nomes como Aristides, Justino Mártir, Taciano, Atenágoras, Teófilo de Antioquia, o desconhecido autor da "Carta a Diogneto", Melito, Irineu de Lyon, Tertuliano de Cartago, e outros. Por volta do século terceiro, a igreja cristã começava a assumir proporções de “império dentro de um Império”. O movimento constante em diferentes igrejas, os sínodos dos bispos, as cartas levadas pelos mensageiros e a lealdade dos cristãos mostrada aos seus líderes impressionavam até mesmo aos imperadores.

A fé cristã se espalhou de uma maneira extraordinária por três  razões: a convicção inabalável que movia os cristãos; uma profunda necessidade no coração das pessoas, a qual podia ser suprida pelo evangelho; a expressão prática do amor cristão através do cuidado com os pobres, viúvas e órfãos, da visitas aos irmãos nas prisões e aos condenados das minas, bem como dos atos de compaixão durante a crise, terremotos ou guerras. Na segunda metade do século II, pelo menos em Roma e em Cartago, a igreja começou a adquirir cemitérios para seus membros, as catacumbas. A Era da Igreja Perseguida mostrou extraordinária expansão, antes que o Cristianismo se deslocasse das catacumbas para as cortes imperiais.

Nos primeiros dois séculos, não havia empenho das autoridades romanas em perseguir e silenciar os cristãos: "poucos imperadores romanos eram vilões sanguinários". Houve perseguições ocasionais e localizadas do Império, como a de Policarpo, bispo de Esmirna. O povo romano via os cristãos como "um nobre exército de mártires". As autoridades imperiais romanas não se importavam muito quanto à religião dos povos conquistados; considerados uma seita do judaísmo, os cristãos foram inicialmente tolerados. Havia, porém, uma diferença fundamental entre o cristão e o judeu quanto ao proselitismo: os judeus não tinham a intenção de converter ninguém ao judaísmo, mas os cristãos seguiam o "Ide" de Jesus. As causas da perseguição começam com uma frase de Tertuliano: "Temos a reputação de vivermos isolados". O chamamento do cristão à santidade de vida tornava-o distinto de outros povos. Santo é separado, mas também é diferente, e as pessoas diferentes são sempre vistas com suspeita. Os ensinamentos cristãos referentes ao corpo como templo do Espírito Santo trouxeram ao mundo antigo uma inflexível condenação da promiscuidade e um chamado sagrado para a vida em família. A ética de vida cristã era uma crítica à vida pagã do povo romano, mesmo sem se opor ostensivamente a ela. A hostilidade aos deuses greco-romanos deu aos cristãos a alcunha de "inimigos da raça humana". A recusa a um convite para um acontecimento social, que normalmente envolvia alguma divindade pagã, levava o povo romano a considerar o cristão como "rude e descortês". Os cristãos, portanto, eram obrigados, por sua fé, a se afastarem das atividades econômica e social do Império, adotando uma nova e revolucionária atitude em relação à vida humana. Um reflexo disso era o comportamento cristão com relação aos escravos, às crianças e às mulheres.

Vistos como "inimigos da raça humana" pelo paganismo romano e defendidos pelos apologistas cristãos, os cristãos espalharam a mensagem de Cristo em todas as regiões do Império, mas expuseram-se às implacáveis perseguições romanas.

3. ACUSAÇÕES E PERSEGUIÇÃO


Apesar de o povo romano julgar os cristãos como “um nobre exército de mártires” e de Roma ser tolerante com a religião dos povos conquistados, os três primeiros séculos da existência da Igreja foram nesta série denominados de “Era da Igreja Perseguida”, já que esse foi o fato marcante naquele início de ministério eclesiástico cristão no mundo. Houve pelo menos três motivos de acusações indevidas aos cristãos nos primeiros séculos: canibalismo, ligado à Ceia do Senhor, pelo início da ideia da transubstanciação; incesto, por chamarem suas reuniões de festa do amor (ágape) e tratarem-se como irmãos; ateísmo, por não terem imagens de seu Deus em suas reuniões.

As primeiras perseguições à Igreja vieram dos próprios judeus, como aquela que acabou causando as mortes de Estêvão e de Tiago, filho de Zebedeu, os primeiros mártires do Cristianismo. Paulo mesmo foi muitas vezes perseguido pelos judeus. As perseguições do Império Romano com relação à Igreja começaram com Nero, no ano de 64, com o incêndio de Roma. Os imperadores Cláudio, Domiciano, Trajano, Adriano, Marco Aurélio e outros foram perseguidores mais ou menos implacáveis dos cristãos, até meados do século III.

Para os povos conquistados, libertos por vezes de tiranos selvagens e sanguinários, a "pax romana" era uma segurança contra assaltos nas estradas, por exemplo, e isso gerou profunda gratidão ao espírito de Roma. O culto ao imperador nasce, portanto, primeiramente do culto à cidade de Roma, ao espírito de Roma, à estrutura do Império Romano, começando a deusa Roma a ser venerada em vários templos; a divindade era então vista como corporificada no imperador. Em meados do século terceiro, o Imperador Décio transformou em lei o que já acontecia antes, tornando oficial e obrigatório o culto a César, que passou a ser considerado como um teste de lealdade política para aferir a boa cidadania. Orar pelo imperador o cristão deveria fazer, mas nunca aceitaria orar para o imperador, como idolatria. O "culto ao imperador romano" foi a pedra angular da política imperial para manter a unidade do Império e talvez a maior causa de perseguição da igreja, já que a crença dos cristãos era sempre "Jesus é o Senhor".

Com Décio, Valeriano e Diocleciano, intensificou-se a perseguição, gerando um maior número de mártires e apóstatas no Cristianismo, até o surgimento de Constantino. Os três imperadores participavam da mesma preocupação fundamental com a unidade político-religiosa do Império. Havia duas finalidades na perseguição final: de um lado, destruir ou erradicar os aspectos institucionais e comunais da Cristandade.; de outro lado, forçar os cristãos, enquanto indivíduos ou como liderança, a participarem das formas tradicionais do culto romano pagão. A não participação no mesmo culto era entendida como não fazer parte da comunidade do Império como cidadão, encarado com crime de lesa-majestade.

Até o ano de 250 não existiu uma lei geral de perseguição, tendo sido a mesma ocasional e espalhada em diferentes regiões do Império. Nos últimos cinquenta anos, ela se intensificou, apoiando-se na legislação especial criada para isso, e grande foi o prejuízo das igrejas e comunidades cristãs, tanto na vida de mártires, quanto nas prisões e perdas de propriedades e literatura, confiscadas em nome do governo imperial. Constantino surgiu, no início do século IV, como um grande divisor de águas na história, criando editos de tolerância e de liberdade de culto para que o Cristianismo pudesse finalmente respirar mais aliviado na sua existência.

4. ORTODOXIA E NOVO TESTAMENTO

O alerta dado por Paulo aos Gálatas sobre a pregação de "outro evangelho" estava na mente dos cristãos primitivos, que conviviam com a ortodoxia do evangelho apostólico e as heresias que apareciam confrontando a fé. Quem é Deus? O criador dotou o homem de pensamento racional e, embora a racionalidade não resolva o problema por si só, ela deve ser usada para achar as respostas. "Existe a intenção de que o homem debata com Deus", afirmou o escritor inglês Charles Williams, e isso induz à teologia. Teologia é o estudo racional de Deus, uma ciência humana que não se mistura à prática da religião. Teologia é o entendimento humano da revelação e o esforço para expressá-lo de modo claro no ensino e na prática. Havia dois panos de fundo culturais em contraste desde o início da igreja: o judaico e o grego; para os cristãos judeus, Deus era o Jeová do Antigo Testamento; para os cristãos gregos, Deus era inicialmente uma abstração filosófica. Os cristãos judeus assimilaram as profecias e conheciam Jesus como Messias, mas para os gregos neófitos, Jesus era um conceito a ser assimilado. É preciso que o cristão acredite que Jesus veio "em carne", base indispensável para a salvação. Dentre as heresias, a mais ambiciosa foi o gnosticismo, uma variedade de movimentos onde havia um "guru", um filósofo, que possuía a "gnosis", o conhecimento do segredo do caminho da vida. A crença básica dos gnósticos era o dualismo, com o mundo dividido entre duas forças cósmicas: o bem (a divindade) e o mal (a matéria). Em seu esforço de conciliar Cristo e o evangelho com a ciência e filosofia de seu tempo, os gnósticos negavam a vinda do Messias e assim perderam o rumo do evangelho. Contra a heresia dos gnósticos, a igreja criou o credo, uma declaração de fé que os cristãos decoravam, servindo de base para a devoção pessoal e o compartilhamento da mensagem do evangelho. Espiritualmente, o homem não precisa de um professor, precisa de um Salvador.

A canonização do Novo Testamento deu-se por etapas. Vários fatores influenciaram o processo de seleção para que os 27 livros viessem a compô-lo. Primeiro, deveriam ser livros com uma qualidade evidente: sua singularidade, por exercerem um poder sem paralelo na vida dos homens; deveriam ser textos utilizados por diferentes congregações e lidos durante o culto; relação de seu autor com algum apóstolo, tendo sido escrito por ele ou por alguém que tivesse tido contato pessoal com ele (a causa mais importante). Marcião talvez tenha sido o primeiro a criar uma relação de livros que ele julgava inspirados, um primeiro cânon neotestamentário. No entanto, opondo-se a tudo o que fosse de origem judaica, ele aceitava apenas o evangelho de Lucas, retirando-se partes referentes aos judeus, bem como dez cartas de Paulo. Como se tratava de uma igreja herege a que foi por ele formada, sua participação foi rejeitada e parece que a Igreja acordou para a necessidade de definir o cânon do Novo Testamento. 

Assim, além de manter o Antigo Testamento como Escritura, a igreja passou a definir, entre centenas de livros existentes e que circulavam entre as congregações, quais seriam os realmente inspirados, os canônicos. A partir do ano 200, a seleção começou pelo "Canon de Muratori" (que leva o nome do descobridor do texto), o qual continha os quatro evangelhos, o livro de Atos e dez cartas de Paulo. Contando com a contribuição de Orígenes, Eusébio e outros, chegamos ao Concilio de Cartago, no final do século quarto, que definiu os 27 livros atuais. Nessa seleção, houve livros que foram incluídos após debate entre lideranças e congregações quanto a eles. Os últimos livros a serem incluídos entre os 27 foram as cartas de Tiago, II Pedro, II e III de João e Judas. Além disso, ficaram de fora cerca de meia dúzia de textos que chegaram a ser cogitados para integrar o Novo Testamento: O Pastor (de Hermas), a Carta de Barnabé, o Evangelho dos Hebreus, o Apocalipse de Pedro, os Atos de Pedro e o Didaquê. Foram livros que circularam entre as congregações, considerados edificantes em sua leitura, mas não satisfizeram as condições estabelecidas para a canonização.

5. PATRÍSTICA E BISPADO


A Vulgata Latina, versão bíblica de Jerônimo, é bastante conhecida. Seu autor amava o Senhor Jesus, mas também conhecia e amava autores clássicos, como Cícero, Virgílio e Horácio. A voz dos apóstolos mal tinha silenciado quando a igreja enfrentou a necessidade de definir a fé de maneira a ser entendida por pessoas inteligentes. Deus fez os homens para pensar, de modo que às vezes a verdade avança enquanto os cristãos defendem o evangelho contra argumentos pagãos.

Tendo surgido numa ocasião em que esses conceitos imperavam, o Cristianismo foi forçado, pela necessidade dos homens e pela missão na igreja, para dentro do mundo do pensamento pagão. No século terceiro, o Cristianismo não era mais uma seita judaica menor, e homens de cultura e poder questionavam: "Qual o papel do Cristianismo nas questões dos homens e dos impérios?" No plano de Deus, a igreja vive em dois ritmos diferentes: separação e envolvimento; separação, porque o evangelho e a vida eterna não vêm dos homens, mas de Deus; envolvimento, porque Deus manda a sua igreja para o mundo para brilhar com luz e guiar os homens à verdade. Isso gera necessidade de se definir os limites entre uma ação e outra. Alguns cristãos resistiram aos esforços de estudiosos ortodoxos para conciliar a fé cristã com a filosofia grega. No século terceiro, Tertuliano perguntou: “O que Atenas e Jerusalém têm em comum?” Os cristãos conseguiriam resistir à filosofia grega ou poderiam recrutá-la como um aliado? Finalmente, Roma e o Império tornaram-se cristãos. O caminho da conciliação foi construído por aqueles professores cristãos que demonstraram que fé e filosofia podiam viver em harmonia quando ambos se curvam perante Cristo.

Desde o início, a teologia objetivava a refutação da heresia. Origines foi o primeiro teólogo a apresentar toda a estrutura intelectual da fé cristã. Orígenes e seu antecessor Clemente preservaram o humanismo do Cristianismo, tornando possível a carreira de outros grandes líderes cristãos que se seguiriam, demonstrando que o melhor da cultura clássica poderia ter lugar e futuro dentro da igreja. Participaram ativamente de um período da história chamado Patrística, o período dos Pais da Igreja.

Durante o Século dos Apóstolos, o Espírito circulava livremente pelas igrejas, fortalecendo os crentes, inspirando os profetas e exorcizando demônios. Surgiram dúvidas: se um cristão pecar gravemente depois receber o Espírito e de se submeter ao batismo, como deverá ter tratado? Montano levantou acusações contra a Igreja por criar heresias e foi violentamente contestado. A igreja pregava às nações, confrontando os hereges e articulando ortodoxia; numa época de pouco acesso a literaturas confiáveis e ainda antes que se completasse a canonização do Novo Testamento, aos poucos desenvolveu-se o poder do episcopado, e o prestígio dos bispos cresceu lentamente. No século I, havia dois tipos de líderes locais: um chamado de anciãos (presbíteros, bispos ou pastores), e outro chamado de diáconos. Já no início do século segundo, Inácio de Antioquia refere-se em suas cartas a um único bispo ou pastor em cada local, um corpo de presbíteros e um outro de diáconos. Aos poucos, esse pastor, assistido pelos anciãos e diáconos, tornou-se o modelo das igrejas. Até o final do século segundo, o modelo do tríplice ministério de Inácio difundiu-se bastante. Em alguns lugares, o bispo de uma cidade grande supervisionava as congregações dos arredores ao nomear presbíteros. No final do século segundo, o líder inconteste quanto aos assuntos da igreja era o bispo, posição fortalecida pelo conflito com as heresias, principalmente o gnosticismo. O historiador Hegésipo foi o primeiro a criar uma lista de bispos desde a época dos apóstolos: era o prenúncio do papado.

A sucessão de bispos da igreja católica desde os apóstolos garantia a continuidade da tradição e das doutrinas. Era o início do dogma católico da Sucessão Apostólica. A Reforma defendeu a restauração do Cristianismo primitivo e o retorno à Bíblia, contestando em parte a sucessão apostólica. Os católicos afirmavam que o Espírito guiava suas decisões de tal forma que o desenvolvimento da doutrina e da igreja não era fruto do trabalho dos homens através da sucessão apostólica, mas sim de Deus. Os modernistas deixam a questão em aberto, justificando mudanças que satisfaçam as necessidades posteriores, incluindo as dos nossos tempos. O surgimento do ofício episcopal criou respostas conflitantes e diferenças confessionais até o dia de hoje, dando margem ao denominacionalismo; no entanto, já no século III, sentiam alguns que o aparecimento do episcopado significou afastamento do Espírito dos dogmas da Igreja.

6. CRISTIANIZAÇÃO DO IMPÉRIO

A palavra tetrarquia designa um sistema de governo em que o poder se divide entre quatro pessoas, denominadas tetrarcas. Foi a forma de governo introduzida pelo imperador romano Diocleciano, em 293, e que perdurou até c. 313. Até que Diocleciano assumisse o poder, houve caos e anarquia no Império Romano. A tetrarquia de Diocleciano previa dois "augustus" (imperadores) e dois "cesares" (subimperadores). Galério, um dos integrantes da tetrarquia, assinou em 311 o Edital de Tolerância, começando a dar fim à perseguição à igreja. Em 312, Constantino derrotou Maxêncio, outro integrante da tetrarquia, na ponte Milvia. Segundo o relato da história, antes da batalha, Constantino viu um sinal no céu, uma cruz brilhante onde se lia “Com isto vencerás”. O exército romano adorava Mitra, o deus Sol. Com sua fé oscilando entre o Deus Jeová dos cristãos e o Mitraísmo persa, o general mandou colocar o sinal nos escudos de seus soldados e venceu a batalha.

Em 313, aconteceu a liberdade de culto em todo o Império Romano.
Constantino pode ser apontado como o iniciador da cristianização do império, embora também tenha iniciado a interferência imperial na igreja. Nessa linha, convivendo a Igreja na época com o Arianismo, Constantino convocou o Concílio de Niceia, em 325, para decidir sobre a heresia ariana.

Em 330, na antiga região de Bizâncio, foi criada aquela que seria a capital do Império Romano do Oriente, Constantinopla. Com o tempo, Constantinopla assumiria a importância que pertencia a Roma e mesmo a substituiria como capital do Império. Em 380, o Imperador Teodósio oficializou o Cristianismo como religião oficial do Império Romano. Teodósio dividiu oficialmente o Império Ocidental e Oriental entre seus dois filhos, divisão essa que já se prenunciava há muito tempo.

Após a morte, Constantino foi sucedido por seus filhos, Constantino II, Constâncio e Constante, que dividiram o império em três partes, tendo o mesmo sido posteriormente reunificado por Constantino II.  Durante os reinados de Constantino e de seus filhos, com relação à igreja, já havia uma divisão, entre Ocidente e Oriente, com características próprias de ambas as partes, sendo Roma e Alexandria os centros ocidentais mais importantes, e Constantinopla e Antioquia os correspondentes na parte oriental.

Constantino converteu-se realmente ao Cristianismo, ou apenas utilizou-se dele politicamente? Helena, sua mãe, abraçou a fé cristã quando seu marido Constâncio Cloro a abandonou e ela influenciou o filho a seguir o mesmo caminho. Enquanto reinou, Constantino oscilou entre o Cristianismo e o paganismo, embora suas decisões tivessem favorecido muito à Igreja: símbolos pagãos sendo substituídos por cristãos nas moedas, direito da Igreja de assumir os bens dos mártires sem testamento legal, construção de templos e adaptações dos já existentes com dinheiro público, tudo isso gerou uma mudança de situação de perseguição a paz interna entre os cristãos, criando um clima favorável à adesão coletiva, deixando de lado a conversão individual com arrependimento dos pecados como meio de ingresso na Igreja.

Constantino foi um divisor de águas, o responsável pelo fim de uma era e pelo início de outra na história do Cristianismo. Em menos de um século, a Igreja Cristã passou da perseguição à tolerância e posteriormente à liberdade de culto. A Igreja outrora perseguida passaria a ser a religião oficial do Império Romano e começaria a perseguir quem não fosse cristão. A atuação de Constantino no Cristianismo trouxe consequências, já que o assim chamado primeiro “Imperador Cristão” passou a interferir nas decisões internas da Igreja como Pontifex Maximus, com ênfase na sua hierarquização e ortodoxia. A designação “Máximo Pontífice” assumida pelo imperador passaria a ser atribuída ao papa de Roma após a queda do Império nas mãos dos bárbaros germânicos.

7. DOGMAS E CONCÍLIOS

Dogma é o ponto fundamental de uma doutrina religiosa, apresentado como certo e indiscutível; concílio é a reunião de dignitários eclesiásticos, (como bispos, por exemplo), presidida ou sancionada pelo papa no meio católico, para deliberar sobre questões de fé, costumes, doutrina ou disciplina eclesiástica. A Igreja reuniu-se em concílio sempre que algum ponto fundamental de sua doutrina foi contestado o longo dos séculos.

O Mistério da Trindade tem acompanhado a história da Igreja desde o seu início, permanecendo até hoje como controvérsia entre alguns grupos. Quando Constantino assumiu o Império Romano, ele encontrou conflitos e divisões internas em várias áreas, principalmente na religiosa, na qual os cristãos, um grupo que havia sido perseguido e que cresceu ao longo dos séculos, se dividiam, e a controvérsia estava justamente no entendimento da Trindade e da pessoa de Cristo. O Imperador queria dar nova vida ao Império debilitado e por isso precisou intervir para fazer com que os cristãos entrassem em acordo com suas próprias crenças.

Para resolver a Questão Ariana, Constantino convocou em 325 o Concilio de Nicéia, o primeiro Concílio Geral da história da Igreja. A polêmica havia surgido inicialmente em Alexandria, no Egito e, para resolvê-la de forma localizada, fora realizado um sínodo. O assunto, porém, tornou-se mais abrangente e Constantino resolveu assumir a controvérsia. Compareceram mais de 300 bispos, muitos deles ainda com marcas no corpo por causa da perseguição recém extinta, e o acontecimento se revestiu de muita pompa. Após os debates, a igreja condenou as ideias de Ário como heresia e aprovou-se a Doutrina Nicena, na forma de um credo, que dizia que Jesus era "o Deus verdadeiro do Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao pai".

Como podemos definir a Trindade? À luz da história, podemos entender que Deus revelou-se para Israel no Antigo Testamento; encarnou-se como o judeu chamado Jesus, que morreu e ressuscitou pela salvação do homem; e incorporou-se à igreja como o Espírito Santo em Pentecostes, participando da vida dos cristãos. Quem foi Jesus de Nazaré: um profeta, um rabino, um revolucionário social ou um sonhador errante? Essas são apenas algumas das opiniões geralmente dadas pelas pessoas sobre o Filho de Deus. Duas escolas teológicas davam, no início, explicações diferentes sobre a figura de Cristo: a Escola de Alexandria enfatizava a natureza divina e a de Antioquia sua natureza humana; a primeira começava no céu e se movia em direção à terra;  a segunda começava na terra e procurava o céu.

O Segundo Concílio Geral da Igreja se reuniu em Constantinopla em 381, sendo o Terceiro Concílio Geral de Éfeso realizado em 431. Vinte anos depois, reunidos em Calcedônia, houve um Quarto Concílio. Os quatro concílios lidaram com a pessoa de Cristo: em Nicéia, ele havia sido declarado completamente divino; em Constantinopla, ele foi entendido como totalmente humano; em Éfeso, a conclusão foi que Cristo é uma pessoa unida; em Calcedônia, Cristo foi entendido como humano e divino em uma só pessoa. Ário, Apolinário, Êutiques e Nestório foram, pela ordem, considerados hereges. Suas ideias, no entanto, continuaram vivas durante muito tempo: Nestório gerou a igreja nestoriana, ainda hoje com milhares de adeptos no Oriente; Apolinário foi base das igrejas monoteístas, que deram origem à igreja jacobita.

Afinal de contas, Quem foi Jesus de Nazaré? João, no início do seu evangelho, afirma que “no princípio, era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”, tendo usado a palavra "logos", pobremente traduzida como verbo ou palavra, mas com um sentido muito mais rico e amplo no grego original. Logos não se refere à oralidade da comunicação, mas à palavra ainda na mente, sem ser proferida - a razão; é  ainda o princípio racional que governa todas as coisas, a lógica divina responsável pela ordem do universo. O texto de João ecoa o princípio de Gênesis, quando Deus criou tudo por meio da sua palavra, conferindo ordem e racionalidade ao mundo. Na crença grega, havia um logos dentro de cada pessoa, a razão humana, e um logos que permeava o universo, a racionalidade que governa o mundo. O logos interior do ser humano capacita-o a agir em harmonia com o logos do universo. Jesus, na acepção de João, é esse logos, através do qual o indivíduo pode chegar à harmonia com Deus e com sua criação. 

8. MONASTICISMO

O monasticismo surgiu no Oriente. A primeira forma de monasticismo foi a de Antônio (ou Antão), o eremita solitário, na segunda metade do século terceiro, que viveu 105 anos, apesar das provações da vida isolada. Com o aparecimento de Constantino, o martírio de muitos cristãos perseguidos deu lugar a uma multidão de pagãos sem convicção de conversão, levando ao declínio no compromisso cristão, que fez o movimento se alastrar. O martírio pela fé cristã deu lugar a uma luta para garantir os privilégios da igreja; ser cristão, antes um risco de vida, tornou-se "status" a ser conquistado. “A posição de bispo não pertence ao mais digno, mas ao mais poderoso", como afirmou Gregório de Nazianzo. O eremita se afastava mais do mundo da igreja, que se tornara uma instituição corrupta, do que do mundanismo.

No monasticismo, orgulho, rivalidade e excentricidade (tentações do mundo) eram substituídos por humildade, altruísmo e simplicidade (qualidades da alma). A fundação do primeiro monastério cristão é atribuída a Pacômio, em 320, com a instituição de uma forma de vida comum e regrada dos monges, que comiam, trabalhavam e adoravam; havia horário de trabalho manual, vestimenta uniformizada e disciplina rígida numa vida comunitária. O movimento espalhou-se pela Síria, Ásia Menor e Europa. Faziam-se votos monásticos em renúncia aos chamados "direitos básicos": posses materiais, felicidade conjugal e liberdade de escolha, raízes do ego e obstruções à comunhão com Deus segundo os monges. Com o tempo, a cela monástica tornou-se um gabinete de estudo e os monges tornaram-se estudiosos, importantes na preservação da herança cultural cristã e greco-romana. O primeiro monge erudito foi Jerônimo, o tradutor da Vulgata Latina. No Ocidente, o monasticismo foi introduzido por Atanásio, autor de "Vida de Santo Antônio", tendo em Ambrósio e Agostinho grandes defensores.

A constituição de vida monástica mais sólida do mundo ocidental foi a de Benedito de Nurcia, já no século sexto, com o Mosteiro de Monte Cassino, na Itália. A rígida disciplina beneditina inicial em suas "Regras Monásticas" não agradou inicialmente a todos, mas foi base para os mosteiros posteriores. A disciplina era fundamental para Benedito, combinada com um certo grau de liberdade. A vida monástica era vista como um tipo de fortificação em um mundo hostil e, para se entrar para ela, exigia-se um período experimental de um ano, após o que viriam os votos de pobreza, castidade e obediência. Cada mosteiro era equipado para suprir as necessidades da vida, com os monges tecendo suas roupas, fabricando seu vinho, com a participação de carpinteiros e pedreiros na comunidade. Benedito considerava os monges andando fora dos muros do monastério um grande perigo espiritual. Havia seis serviços religiosos a cada 24 horas de duração breve, em geral recitação de Salmos, e um de mais longa duração às 2 horas da madrugada, a vigília.

A ociosidade é hostil à alma" e o dia era ocupado com trabalhos manuais e leituras religiosas. No verão, as atividades aconteciam no campo e no inverno aumentava-se a leitura. O monastério beneditino era "um pequeno mundo em si mesmo, em que os monges viviam uma vida intensa, mas não sobrecarregada, que compreendia trabalho intenso na oficina e no campo e leitura séria".

9. AGOSTINHO DE HIPONA

"Minha voz morre em minha garganta. A cidade que tornou todo o mundo cativo é agora cativa", disse Jerônimo, diante da queda de Roma no século quinto. Em Hipona, na África, o bispo Agostinho assistiu à chegada dos refugiados, ajudou-os na acomodação em nova cidade de residência e buscou explicações para o inexplicável fato; sua obra gerou uma filosofia que alicerçou  a Cristandade, serviu de base para o Catolicismo romano e, mais de 10 séculos depois, daria para o Protestantismo sua visão sobre pecado e graça.

Filho de um pagão e de uma cristã, Agostinho teve de seus pais a melhor educação possível. Quando jovem, viveu uma vida dissoluta, tendo gerado Adeodato, filho de um relacionamento de mais de uma década com uma jovem. Antes da conversão, ele procurou no paganismo filosófico e no maniqueísmo persa respostas para sua busca pela verdade e pelo bem. Além de Hipona, Agostinho viveu também em Tagaste e em Cartago, na África, indo para Roma no final do século quarto. Sua conversão aconteceu aos 30 anos de idade e foi influência da pregação de Ambrósio e da vida monástica. Ao ouvir uma voz de criança cantando "pegue-o e leia", entendeu que deveria ler o Novo Testamento e achou o caminho da Salvação em Romanos. Batizado em Milão, voltou para a África como um novo homem, tendo sido ordenado sacerdote e nomeado Bispo de Hipona. Logo no início enfrentou o Donatismo, que combatia a apostasia de bispos durante a perseguição e a ministração de sacramentos por eles. Enfrentou também o Pelagianismo, movimento posteriormente rejeitado pela igreja no Concílio de Éfeso. Pelágio defendia a liberdade do homem para agir de modo correto ou errado, rejeitando a herança do pecado adâmico. Assim sendo, entendia que era possível ao homem não pecar e rejeitava a doutrina da predestinação. Por experiência própria, Agostinho tinha convicções que contrariavam as ideias de Pelágio, que defendia a concepção histórica do autocontrole ascético. Ele sabia que a salvação depende somente da graça de Deus, através do novo nascimento.

A queda de Roma foi sua motivação para escrever a "Cidade de Deus”, obra que influencia o pensamento cristão até hoje. As cidades do mundo são unidas pelo amor às coisas temporais; na Cidade de Deus, o que une é o amor a Deus. A cidadania vivida e entendida pelo cristão nos dias de hoje remonta sua inspiração, em grande parte, à “Cidade de Deus” de Agostinho.

Em sua obra As Confissões, encontramos Agostinho procurando explicar as lutas e conflitos internos que enfrentou, empreendendo uma profunda investigação da própria alma, na sincera busca por Deus. Essa luta da mente e da alma somente cessa com a conversão a Cristo. Ele reconhece: “Buscava um meio que me desse força necessária para gozar de ti, e não a encontrei enquanto não me abracei ao Mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus, que está sobre todas as coisas, Deus bendito por todos os séculos, que chama e diz: Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Um fator presente em toda a obra é a noção de que é Deus quem vem ao encontro do homem para alcançá-lo e salvá-lo.

A Reforma Protestante do século XVI deve a Agostinho o cerne de suas principais proposições, particularmente em questões como o pecado original, a graça de Deus, a salvação e a predestinação. Lutero, Calvino, Melanchton e outros encontraram na teologia agostiniana fundamento para o rompimento com o status quo da igreja romana e para afirmar a unidade do pensamento genuinamente cristão, que remonta aos ensinos dos Pais da Igreja e dos Apóstolos. Lutero disse: “No começo de minha carreira, como professor de teologia, eu não simplesmente lia Agostinho, mas devorava suas obras com voracidade”. Calvino afirmou em latim: “Augustinus totus noster est”, isto é, “Agostinho é todo nosso”. O historiador Justo Gonzalez lembra que, nas Institutas de Calvino “se manifesta um conhecimento profundo, não só das Escrituras, mas também de antigos escritores cristãos, particularmente Agostinho”; Calvino faz em sua obra centenas de citações de textos do bispo de Hipona. No período pós-Reforma, as gerações têm sido alimentadas pelas ideias e pensamentos de Agostinho. Ele é provavelmente o mais qualificado representante da igreja primitiva e permanece como uma das mentes mais importantes da história da fé cristã.

Em Agostinho, temos uma impressionante profundidade teológica, assertividade e firmeza doutrinária, intensa devoção a Deus, inquestionável respeito ao texto bíblico e genuína preocupação pastoral. O cardeal Ratzinger, posteriormente Papa Bento XVI, referindo-se a ele, disse: “Quando leio os escritos de Santo Agostinho, não tenho a impressão que se trata de um homem morto há mil e seiscentos anos, mas sinto-o como um homem de hoje: um amigo, um contemporâneo que me fala, que fala a nós com sua fé vigorosa e atual”. Segundo ele,  Agostinho nos encoraja a confiarmos neste Cristo sempre vivo e encontrar nele o caminho da vida. Agostinho teve os seus limites e cometeu seus equívocos na sua interpretação das doutrinas cristãs, mas encontramos nele uma mente brilhante e um coração radiante, que ardia por amor a Deus, como pouco se pode encontrar ao longo da história.

10. O PAPADO


Do ponto de vista protestante, o papado não é uma instituição de origem divina, mas resultou de um longo e complexo processo histórico. A Igreja Católica em sua história inicia a longa lista de papas com o apóstolo Pedro. Na citação bíblica “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja”, a pedra não é Pedro como chefe universal da igreja; as primeiras gerações da Igreja não entenderam as palavras de Cristo dessa maneira.

Na sequência da história da Igreja, não há uma base segura para afirmar que Pedro tenha estado em Roma e sido o primeiro bispo daquela igreja. Sendo as igrejas governadas por colegiados de bispos ou presbíteros no primeiro século, não se menciona qualquer episcopado monárquico no Cristianismo.

Ainda na Igreja Antiga, os bispos de Roma alcançaram grande importância. Alguns papas foram piedosos, íntegros, com saber teológico e habilidade administrativa. Ao longo dos séculos, muitos dos principais eventos da história do cristianismo nas áreas da teologia, organização eclesiástica e relações entre a Igreja e a sociedade tiveram conexão com a instituição papal. A função papal passou a ser atrelada ao bispo de Roma a partir de meados do quinto século. Roma passou a ter uma importância crescente desde o primeiro século, tornando-se a maior, a mais rica e a mais respeitada comunidade de toda a cristandade ocidental, com provas disto em Atos e na carta de Paulo aos Romanos. No segundo século, surgiu a tradição de que tanto Paulo como Pedro, os dois apóstolos mais destacados, haviam sido martirizados naquela cidade. A própria centralidade e importância da antiga capital do Império Romano Ocidental também levou Roma a ser considerada sede da Igreja.  Na região oriental, competiam pela supremacia em virtude de sua antiguidade e conexões apostólicas as igrejas de Alexandria, Jerusalém, Antioquia e Constantinopla.

No quinto século, Leão I (440-461) é considerado por muitos historiadores como “o primeiro papa”, exercendo papel estratégico na defesa de Roma contra as invasões bárbaras. Gregório I (ou Gregório Magno: 590-604) foi o primeiro monge a ocupar o trono papal com uma marcante atuação. Um momento significativo na história do papado ocorreu no Natal de 800, quando Leão III coroou Carlos Magno como Sacro Imperador Romano-Germânico. Na época, o bispo romano já era considerado líder do Ocidente. Em muitas ocasiões, os papas tiveram relacionamento estreito e conflitivo com imperadores.

Houve períodos sombrios, com imoralidade e corrupção na história do papado. Poderosas famílias controlavam a Igreja, em um período de muita mundanidade na Igreja, atingindo sua liderança. Papas reformadores procuraram moralizar a administração da Igreja, tentando afastar males que a assolavam. O ápice do poder papal é considerado por muitos historiadores como o pontificado de Inocêncio III (1198-1216), que concretizou o ideal da “cristandade”, ou seja, uma sociedade plenamente integrada sob a autoridade dos reis e especialmente dos papas. Ele foi o primeiro papa a utilizar o título “Vigário de Cristo”.

Entre os séculos XIV e XV houve novo declínio, com os papas residindo em Avinhão, na França, por mais de setenta anos, sob a influência dos reis franceses. É o período chamado de “Cativeiro Babilônico da Igreja”. Por outros quarenta anos, houve dois e até três papas simultâneos em Roma, Avinhão e Pisa, no “Grande Cisma” situação sanada por concílios, como o de Constança.

Entre os séculos XV e XVI houve os chamados “Papas do Renascimento”, com poucas preocupações espirituais e pastorais. O espanhol Rodrigo Borja (Alexandre VI - 1492-1503) promoveu as artes e a beleza de Roma; Júlio II (1503-1513) foi um papa guerreiro; Leão X (1513-1521) teria dito ao ser eleito: “Agora que Deus nos deu o papado, vamos desfrutá-lo”. Foi o papa da época de Lutero. A“Contra-Reforma” aconteceu com os papas Paulo III, Paulo IV e Pio IV.

A partir do século XVII, os conflitos entre Igreja e Estado continuaram a existir durante a Modernidade. A autoridade pontifícia é rejeitada não somente pelos protestantes, mas pela Igreja Oriental, que tem raízes tão antigas e apostólicas quanto à Igreja latina.

11. CATOLICISMO ROMANO X CATOLICISMO ORIENTAL


Em 1054, o Papa Leão IX, líder da Igreja Católica Romana, e o Patriarca do Oriente se excomungaram mutuamente, após um longo e complicado processo, originando o primeiro cisma oficial do Cristianismo. O Catolicismo Ortodoxo, menos conhecido e estudado que o Ocidental, é mais do que um “catolicismo sem papa”.

O sistema ortodoxo comporta hoje 15 igrejas distintas, a maioria na Europa Oriental, com uma fé e uma história comuns. A característica mais marcante é a presença do ícone no lugar da imagem tridimensional católica, pois o oriental entende que o homem foi criado à imagem de Deus e carrega um ícone de Deus dentro de si. Por isso, ao chegar ao templo, o adorador vai primeiro ao iconostasis, a parede de quadros que separa o santuário da nave, onde beija o ícone do santo de sua preferência.

Constantinopla foi fundada por Constantino como a "Nova Roma, Cidade do Imperador e do Senado", tendo sido levada para lá a capital do Império Romano. Teodósio, um dos sucessores de Constantino no final do século IV, foi o responsável pela oficialização do Cristianismo como religião do Estado do Império, bem como pela sua divisão oficial, após sua morte, criando o Império Romano Ocidental, com a capital em Roma, e o Oriental, com a capital em Constantinopla. Os dois segmentos ficaram nas mãos dos dois filhos de Teodósio. A partir de então, Oriente e Ocidente passaram a trilhar caminhos diferentes. Pouco menos de um século após, em meados do século quinto, a parte ocidental do império deixaria de existir, caindo nas mãos dos bárbaros germânicos; a parte oriental continuaria a existir por mais dez séculos, caindo Constantinopla nas mãos muçulmanas dos turcos otomanos.

No século sexto, o Imperador Justiniano deu origem ao estilo que combinava lei humana, fé cristã e filosofia helenística, a chamada arte bizantina. O exemplo arquitetônico maior foi a reconstrução da “Igreja da Sagrada Sabedoria de Constantino”, a Haja Sofia. Justiniano definiu o futuro da ortodoxia oriental, unindo império e igreja. Sua missão como Imperador foi assim por ele resumida: "Manutenção da fé cristã em sua pureza e proteção da Sagrada igreja católica e apostólica contra qualquer perturbação".

A presença e veneração do ícone na igreja acabou por provocar uma verdadeira idolatria, que com o tempo eclodiu na "Reforma Iconoclasta", com seu apogeu no século VIII, sob o domínio do Imperador Leão III. Após algum tempo, houve um equilíbrio no conflito. O cisma ocorreu em 1054, tendo por cenário Haja Sofia em Constantinopla. Após a separação oficial, com as pressões da Europa Católica Romana no Ocidente e do Islã no Oriente, um estreito corredor se abriu para o Norte, onde Boris, rei dos búlgaros, e Wladimir, Príncipe de Kiev e de toda a Rússia, abriram as portas para o catolicismo ortodoxo em toda região, tornando-se Moscou líder do mundo ortodoxo. Após a primeira Roma Romana, a segunda bizantina em Constantinopla, surgiu a terceira em Moscou, onde o Imperador atribuiu a si mesmo um título inspirado em Roma: o Czar Russo, que tem como origem o César Latino.

Sintetizando as diferenças entre o catolicismo ocidental e oriental, no primeiro a autoridade máxima é do papa no último não há uma autoridade máxima na igreja, sendo sua hierarquia mais alta um colegiado de bispos presidido pelo Patriarca de Constantinopla. O celibato é obrigatório para todos os sacerdotes católicos romanos, enquanto no oriental tal exigência é apenas para os bispos e liderança maior. O calendário gregoriano é o adotado por Roma e aqueles que a seguem, já que foi estabelecido pelo Papa romano Gregório no século XVI; a Igreja Oriental usa o calendário juliano, do Império Romano, que possui uma diferença de 13 dias em relação ao gregoriano. A cruz tradicional com apenas uma barra horizontal é romana e a ortodoxa possui 3 barras, uma menor para a inscrição (em latim INRI), outra maior para os braços e uma terceira, mais abaixo, para os pés. Ainda no Império Romano, o latim era usado no Ocidente e o grego no Oriente; na Igreja Romana, anteriormente era utilizado o latim na missa, hoje se emprega a língua local; os ortodoxos utilizam o idioma local. Com relação aos dogmas, a Igreja Ocidental introduziu a crença no purgatório, enquanto os orientais não a aceitaram, assim como outros dogmas romanos, como os ligados a Maria, por exemplo (virgindade eterna, imaculada concepção, ascensão aos céus, por exemplo).

O número de católicos no mundo em 2016 era calculado em 1 bilhão e oitocentos milhões, cerca de 18% da população mundial, dos quais cerca de 250 milhões são ortodoxos, principalmente localizados na Europa Oriental.  

12. OS BÁRBAROS

As invasões e a conversão dos bárbaros ao Cristianismo são episódios históricos muitas vezes envoltos em lendas. Um dos fatos é o de Bonifácio, enviado pelo Papa para evangelizar a Alemanha e que, na floresta sagrada de Thor, derrubou o imponente carvalho consagrado ao deus bárbaro erguendo seu machado e provocando uma lufada de ar soprada por Deus. Segundo Shelley, “os monges missionários venceram a magia dos bárbaros invocando poderes superiores: Deus soprou e a árvore caiu”. Com a madeira da árvore foi construída uma capela consagrada a Pedro. Na conversão dos bárbaros, a civilização que surgiu das ruínas da invasão tinha caráter cristão somente porque os invasores submeteram ao Cristianismo os seus deuses, não os seus exércitos.

Inicialmente, para os gregos, bárbaro era todo aquele que não falava a sua língua. Com a Grécia dominada pelo império romano, Roma encampou o conceito. Historicamente, os germânicos eram originários da Escandinávia e espalharam-se pelo norte da Europa, tendo diferentes nomes, como vândalos, francos, anglos, saxões, godos, lombardos, borgonheses e outros. Segundo o historiador Tácito, os germânicos eram “beberrões e jogadores”, porém também eram “homens corajosos, respeitadores da mulher, sem os vícios romanos, apreciadores das lendas de seus heróis e deuses”. Eram ainda belicosos e fiéis a seus comandantes. Inicialmente, eles sofreram influência do comércio romano e entraram no Império como escravos; passaram a ocupar terras desocupadas, serviram no exército romano e tornaram-se maioria na corporação e na liderança.

A invasão dos bárbaros germânicos no século IV se deu em ondas, com três mais significativas. A primeira delas aconteceu em 410, com Alarico e seus visigodos; a segunda foi liderada por Genserico e seus vândalos, em 455. Entre as duas, aconteceu o episódio do Papa Leão I, que negociou com Atila fora dos muros de Roma, salvando a cidade da destruição. 476 marcou o fim do Império Romano do Ocidente com a terceira invasão. Nela, Odoacro matou o bárbaro Orestes, que havia colocado seu filho Rômulo Augusto como imperador romano. Odoacro destronou o último imperador.

Quanto à conversão dos bárbaros ao Cristianismo, ela aconteceu de acordo com dois pontos de origem: diretamente do paganismo; indiretamente, da “heresia ariana”, que começou no final do século IV com Úlfilas, o missionário entre os godos, cuja fé se propagou por outras tribos. Da Irlanda, Patrício pregou aos celtas no início do século V. O monge irlandês Columba construiu um monastério em Iona. Inicialmente, o Cristianismo cresceu nas Ilhas Britânicas de forma independente do poder papal. Agostinho de Canterbury ali atuou enviado pelo papa romano no final do século VI, começando pela região de Kent e prosseguindo para o norte. Da Inglaterra surgiu Bonifácio, chamado de Vinfredo, enviado pelo Papa no final do século VIII para evangelizar a Alemanha, cujo relato inicia esse texto.

“Se me concederes a vitória, crerei em ti e me farei batizar”. Dita antes de uma batalha decisiva, esta frase de Clóvis (c. 466-511), o primeiro rei dos Francos a unir todas as tribos francas sob um único governante, alterando a forma de liderança de um grupo de chefes tribais para um governo de um único rei e assegurando que o reinado era passado para os seus herdeiros, soa muito parecida com a experiência da “conversão” de Constantino, mais e um século antes.

A "conversão individual" a Cristo do início do Cristianismo, seguida do batismo, aceita e praticada até hoje pelos protestantes conservadores, foi sendo substituída na história da Igreja pela "conversão em massa", inicialmente por conveniência social a partir da oficialização do Cristianismo, aconteceu novamente na época ora focalizada com os bárbaros, por conveniência de expansão da fé cristã. Ela parece se assemelhar a uma barganha com Deus, algo que aparentemente não desapareceu na prática cristã de nossos dias.

ÍNDICE

Introdução 1.        O século apostólico 2.        Expansão, perseguição e defesa da fé 3.        Acusações e perseguição 4.        ...