"Minha voz morre em minha garganta.
A cidade que tornou todo o mundo cativo é agora cativa", disse Jerônimo,
diante da queda de Roma no século quinto. Em Hipona, na África, o bispo
Agostinho assistiu à chegada dos refugiados, ajudou-os na acomodação em nova
cidade de residência e buscou explicações para o inexplicável fato; sua obra
gerou uma filosofia que alicerçou a Cristandade, serviu de base para o
Catolicismo romano e, mais de 10 séculos depois, daria para o Protestantismo
sua visão sobre pecado e graça.
Filho de um pagão e de uma cristã, Agostinho teve
de seus pais a melhor educação possível. Quando jovem, viveu uma vida
dissoluta, tendo gerado Adeodato, filho de um relacionamento de mais de uma
década com uma jovem. Antes da conversão, ele procurou no paganismo filosófico
e no maniqueísmo persa respostas para sua busca pela verdade e pelo bem. Além
de Hipona, Agostinho viveu também em Tagaste e em Cartago, na África, indo para
Roma no final do século quarto. Sua conversão aconteceu aos 30 anos de idade e
foi influência da pregação de Ambrósio e da vida monástica. Ao ouvir uma voz de
criança cantando "pegue-o e leia", entendeu que deveria ler o Novo
Testamento e achou o caminho da Salvação em Romanos. Batizado em Milão, voltou
para a África como um novo homem, tendo sido ordenado sacerdote e nomeado Bispo
de Hipona. Logo no início enfrentou o Donatismo, que combatia a apostasia de
bispos durante a perseguição e a ministração de sacramentos por eles. Enfrentou
também o Pelagianismo, movimento posteriormente rejeitado pela igreja no
Concílio de Éfeso. Pelágio defendia a liberdade do homem para agir de modo
correto ou errado, rejeitando a herança do pecado adâmico. Assim sendo,
entendia que era possível ao homem não pecar e rejeitava a doutrina da
predestinação. Por experiência própria, Agostinho tinha convicções que
contrariavam as ideias de Pelágio, que defendia a concepção histórica do autocontrole
ascético. Ele sabia que a salvação depende somente da graça de Deus, através do
novo nascimento.
A queda de Roma foi sua motivação para escrever
a "Cidade de Deus”, obra que influencia o pensamento cristão até hoje. As
cidades do mundo são unidas pelo amor às coisas temporais; na Cidade de Deus, o
que une é o amor a Deus. A cidadania vivida e entendida pelo cristão nos dias
de hoje remonta sua inspiração, em grande parte, à “Cidade de Deus” de
Agostinho.
Em sua obra As
Confissões, encontramos Agostinho procurando explicar as lutas e
conflitos internos que enfrentou, empreendendo uma profunda investigação da
própria alma, na sincera busca por Deus. Essa luta da mente e da alma somente
cessa com a conversão a Cristo. Ele reconhece: “Buscava um meio que me desse
força necessária para gozar de ti, e não a encontrei enquanto não me abracei ao
Mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus, que está sobre todas as
coisas, Deus bendito por todos os séculos, que chama e diz: Eu sou o caminho, a
verdade e a vida”. Um fator presente em toda a obra é a noção de que é Deus
quem vem ao encontro do homem para alcançá-lo e salvá-lo.
A Reforma Protestante do século XVI deve a
Agostinho o cerne de suas principais proposições, particularmente em questões
como o pecado original, a graça de Deus, a salvação e a predestinação. Lutero,
Calvino, Melanchton e outros encontraram na teologia agostiniana fundamento
para o rompimento com o status
quo da igreja romana e para afirmar a unidade do pensamento
genuinamente cristão, que remonta aos ensinos dos Pais da Igreja e dos
Apóstolos. Lutero disse: “No começo de minha carreira, como professor de
teologia, eu não simplesmente lia Agostinho, mas devorava suas obras com
voracidade”. Calvino afirmou em
latim: “Augustinus totus noster est”, isto
é, “Agostinho é todo nosso”. O historiador Justo Gonzalez lembra que, nas
Institutas de
Calvino “se manifesta um conhecimento profundo, não só das Escrituras, mas
também de antigos escritores cristãos, particularmente Agostinho”; Calvino faz
em sua obra centenas de citações de textos do bispo de Hipona. No período pós-Reforma,
as gerações têm sido alimentadas pelas ideias e pensamentos de Agostinho. Ele é
provavelmente o mais qualificado representante da igreja primitiva e permanece
como uma das mentes mais importantes da história da fé cristã.
Em Agostinho, temos uma impressionante profundidade teológica, assertividade e firmeza doutrinária, intensa devoção a Deus, inquestionável respeito ao texto bíblico e genuína preocupação pastoral. O cardeal Ratzinger, posteriormente Papa Bento XVI, referindo-se a ele, disse: “Quando leio os escritos de Santo Agostinho, não tenho a impressão que se trata de um homem morto há mil e seiscentos anos, mas sinto-o como um homem de hoje: um amigo, um contemporâneo que me fala, que fala a nós com sua fé vigorosa e atual”. Segundo ele, Agostinho nos encoraja a confiarmos neste Cristo sempre vivo e encontrar nele o caminho da vida. Agostinho teve os seus limites e cometeu seus equívocos na sua interpretação das doutrinas cristãs, mas encontramos nele uma mente brilhante e um coração radiante, que ardia por amor a Deus, como pouco se pode encontrar ao longo da história.